sala VIP

quinta-feira, 15 de julho de 2010

vida de professor


Em Zé Doca (MA), moramos, eu e os professores Luiz Carlos, Péricles e Cidreira, numa mesma casa, pois, assim, dividimos as despesas e, paralelamente, assombramos a vida solipsista.
Na casa, existe um caderno contábil, onde cada morador faz uma planilha de suas despesas coletivas durante o mês, para que uma divisão equitativa seja processada no ajuste de contas. Combinamos, portanto, que seriam anotados somente produtos de limpeza e materiais de manutenção das instalações elétricas, hidráulicas e sanitárias da casa. Produtos alimentícios, não anotamos.
O balanço contábil do mês de junho de 2010 foi feito por mim. Depois da conclusão do trabalho, Luiz pegou o caderno para uma breve conferência e, admirado, falou-me:
- Você somou os ovos do padre!
Cidreira, o padre – o cara reza pra cacete, quiçá por distração, anotou meia dúzia de ovos na sua planilha.
Surpreso, disse eu:
- Não acredito: os ovos do padre passaram na contabilidade?
Péricles, o pastor – o cara é evangélico, estava alheio à conversa, mas arrematou:
- O padre passou foi os ovos em vocês!

frase de placa


"Uma pessoa com crença política é um poder social igual a noventa e nove outras pessoas que possuam apenas interesses."
Stuart Mill

Aquarela infantil

O meu mundo infantil era cíclico e robusto de sonhos estilizados de fantasmas, heróis em quadrinhos, bruxas malvadas e seres imortais. Um pseudomundo onde eu podia folgar sem a repressão de adultos, pois era um multicolor mundo interior que me libertava e, paradoxalmente, encerrava-me entre limites míopes e particulares.
No meu mundo pueril, tudo era possível: a abstração gótica projeta-se no horizonte e nuvens transformam-se em bravos cavalheiros ou assustadores monstros. Dentre todos os meus sonhos, uma coisa, supinamente chamada criatividade, grassava dentro de mim: montava meus carros, pipas, lambretas (uma clonagem de patim feita com rolamentos de carro), sinuca, etc. Tinha uma facilidade impressionante em criar e resolver ignóbeis problemas. Tudo isso, agitado no espírito aguçado, se convertia numa uma alquimia inocente e lúdica.
Hoje, deparo-me com o meu filho falando sozinho e, enclausurado dentro do seu próprio mundo, travando duríssimas batalhas contra inimigos quiméricos de jogos de vídeo. Certo dia, alguém me disse: “Jones estava falando sozinho!” Respondi: “Não tem problema.” A pessoa reforçou que ele estava mentindo e, portanto, peremptoriamente, rebati que ele estava criando, como fazem os escritores, por exemplo. Seja lá o que ele tenha dito não configurava um pecado, mas uma manobra cognitiva que futuramente o conduziria a solução de problemas. Não estou confabulando, pois foi assim que, nos meus devaneios rasantes de criança, eu aprendi a encarar o mundo sem dilacerar a minha alma.
Não importa a época, o importante é deixar a criança sonhar, pois faz bem ao ego infantil e desenvolve situações estratégicas para preleções de futuras disputas.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

vida de professor

No dia 15 de junho de 2010, a Seleção Brasileira de Futebol estrearia na copa do mundo na África do Sul. Como a maioria dos professores do Instituto Federal do Maranhão, campus Zé Doca, é de outras cidades, combinamos de assistir ao jogo na casa da professora Carolzinha. A carne para o tira-gosto e o “combustível” da euforia já estavam comprados.
Na lanchonete do campus, almoçávamos, eu e os professores Ivaldo e Nivaldo, numa mesma mesa, quando resolvi fazer uma provocação:
- Hoje à noite não haverá aulas, pois, depois do jogo, os professores estarão embriagados!
Nivaldo, diretor de ensino, rebateu:
- Eu virei! Não irei nem beber hoje.
Ivaldo, o diretor geral do campus, fez o desfecho do diálogo:
- Eu, também, virei. Afinal, alguém tem que estar aqui para colocar falta em vocês.

frase de placa



"O descontentamento é o primeiro passo na revolução de um homem ou de uma nação."
Oscar Wilde

desejo de torturar criança IV


Depois de poucos anos de formado em engenharia mecânica, formalizei uma união estável, que perdurou por dez anos, e, então, nesse ínterim, meu filho nasceu.
A educação pela palmatória pedagógica era, inconscientemente, intrínseca em meu espírito eclipsado de genitor, pois, por duas vezes, meio motivado por terceiros, eu o castiguei à meus pais, que foram criados na zona rural de uma localidadezinha piauiense qualquer, antes da década de sessenta, e, portanto, os conceitos de educação, adquiridos de meus avós, eram perfunctórios. Eles, meus avós, compactados no pujante analfabetismo, viviam da agricultura de subsistência. Na época, segundo ouvi, homem de valor era aquele que tinha um paiol abarrotado de cereais, montava em cavalo e pegava gado bravo na jurema, passava dias e noites enfurnado no mato caçando animais silvestres, etc. Estudo, naqueles rincões, não tinha valor.
Minha mãe, criada por uma madrasta, nunca foi a uma escola: se aprendesse a ler, segundo o meu avô, iria escrever bilhetes pros homens; meu pai, coitado, mal aprendeu, depois de adulto, a esboçar o nome no MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização, implantado no regime militar. Não posso culpá-los por cultuarem a educação pelo castigo. Eram inocentes, influenciados pela herança educacional da tortura psicossomática. Agora, eu, com nível superior de educação, não poderia ser influenciado por esse método decrépito de ensino. Mas era. Parece-me que não era eu quem o açoitava, mas aquela criança que ficou internalizada dentro de mim com choros soluçantes, apertados e engasgados depois de uma surra; aquela criança que resmungava de revolta olhando os “camaleões” distribuídos aleatoriamente por todo o corpo, que ardia em febre rubra.
Pois bem, certo dia, depois de um julgamento relâmpago, sem direito de defesa do réu, decidi castigar o meu filho. Ao levantar o cinto, perverso objeto de tortura, ele, completamente trêmulo, com as mãos postas como quem vai rezar, suplicou-me, humilhantemente de joelhos e com uma visão heliotrópica, para que eu não o açoitasse. Minha mão ficou inanimada no ar. Um remorso corrosivo invadiu as minhas vísceras e, então, o fantasma da covardia recolheu sua sombra lúgubre que pairava sobre mim.
Chamei-o para a sala e, em gestos mecânicos e formais de autoridades, pedi que se sentasse numa cadeira. Assustado, com expressão de pânico, sentou-se em um quarto da cadeira como se estivesse, a qualquer momento, esperando um açoite. Prolongadamente, sem conflagrações, conversamos. Parece-me, sem elucubrações precipitadas, que a conversa foi mais pungente do que o castigo. Eu me senti mais confortável: os matizes decrépitos da tortura, que poderia me transformar num monstro perante meu filho, enraizados desde a minha infância, foram enigmaticamente diluídos do meu ser.
Desde aquele diáfano dia, aposentei todos os objetos de tortura e passei a condenar e abominar o castigo torturante em crianças.

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