sala VIP

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

o carneirinho vermelho



Antes do Sol ferir as folhas com seus raios, fazendo-as chorar o orvalho noturno, acordei. À distância, ouvia, em alguma casa da vizinhança, os gemidos de um pilão. A noite ainda se negava a ir embora e os raios de uma lamparina espremiam-se pelas frestas da janela do quarto onde eu dormia e, portanto, fulminavam a minha rede. Insistentemente, uma cabra balançava o chocalho, preso por uma amarra no seu pescoço, na malhada da porta da fazenda. Fora de casa, meu pai e minha mãe, bem baixinho, falavam coisas ininteligíveis. Puxei a correia de couro curtido e abri a porta, que se espreguiçou estalando-se: as dobradiças mal sentadas e sem lubrificação rangiram dolorosamente. Ganhei a sala, que, como todo o padrão da região, não tinha paredes. Na entrada, apenas um peitoril onde os visitantes descansavam gibões, perneiras, selas, amarras com chocalhos, chicotes, peias, chapéus, etc. Debaixo de um umbuzeiro, bem na frente da casa, minha mãe segurava uma lamparina e uma cuia. Meu pai, na maior naturalidade, puxou uma faca, de doze polegadas, da bainha que, brilhando o gume afiado à luz da lamparina, descreveu uma parábola no ar e foi enterrada no pescoço de um carneiro. Na minha inocência de criança, não entendia nada daquele ritual macabro. Um líquido viscoso e vermelho começou a escorrer pelos pêlos do carneiro. A minha mãe, rapidamente, colocou a cuia para aparar o líquido de fácil coagulação. Aquele líquido encarnado foi muito agressivo a minha estrutura psicológica: eu não sabia que por detrás daquele pêlo tão branco se escondia uma cor tão forte. Ninguém nunca me falara! Não entendia, também, por que papai fez aquilo. Ele mesmo me ensinara: "Olha o carneirinho, filho! Carneirinho!" E carneirinho era criado para ser perfuro-cortado com faca? Eu não tinha a mínima ideia do que significava o substantivo MORTE. Mesmo assim, naquele momento, pressenti que algo, nunca visto antes por mim, estava acontecendo. E, então, senti um filete de morte, carregada por uma brisa geladíssima, ligando-me àquele líquido. Uma sensação de mal estar e frio. Algo que eu não via, mas embriagava o meu ser. Uma coisa identificável: nunca mais foi preciso alguém dizer-me que existe a morte. Ela estava ali, na minha cara! Ela era aquele cheiro forte de sangue e mijo. Era aquela faca vermelha com uma biqueira na ponta. Era o carneirinho esticado pelas patas no umbuzeiro. Tudo era a morte. Não suportei ficar de pé com o cheiro de morte me sufocando e, portanto, caí sobre os calcanhares e fiquei recostado sobre os troncos de carnaúba que formavam o peitoril. Tremia. O queixo batia. O filete de morte percorria a minha espinha. Uma ânsia de vômito dominava-me. Minha mãe, percebendo-me, abandonou a cuia e correu ao meu encontro. Levou-me pro interior da casa e não deixou que eu visse e sentisse mais a manifestação da morte naquele terreiro. No entanto, pro resto de minha vida, ficou o estigma: não tolero ver sangue.
Floriano (PI), 1984

2 comentários:

Deus Carmo disse...

Muito bonito seu conto. Gostei. Mas, só uma coisa: Você queria dizer "falavam coisas ininteligíveis"?

Antonio José Rodrigues disse...

Bom dia, Deus Carmo. Perfeita a sua observação. Obrigado.

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